Hoje eu quero falar sobre transição capilar. Sei que já tem lindas cacheadas e crespas falando sobre isso mas quero compartilhar minha libertadora experiência de auto estima e resgate da identidade. O assunto desse post é muito mais que cabelo, é contar um pouco da minha história de aceitação. Dizem que a criança começa se lembrar das coisas depois dos sete anos de idade, exatamente nessa fase começo a me recordar de ouvir comentários negativos a respeito do meu cabelo. Observava a boneca Barbie e ela era lisa, as personalidades referência da época também eram lisas: Xuxa, Mara Maravilha, Mallu Mader e Gabriela Duarte. Mais tarde, até a Glória Maria já estava lisa.
Nessa época, meu cabelo que era ondulado nas pontas e com a raiz mais lisa começou a engrossar, ter frizz e ficar mais crespo. Ouvia coisas do tipo: “o cabelo dela está ficando ruim”, “quando chegar a adolescência não vai ter jeito”, “está endurecendo”, “vai ter que cortar Joãozinho”… Quando completei oito anos de idade quis cortar curtinho, numa tentativa de me antecipar do inevitável. Naquela época já se usava doar ou vender o cabelo cortado. No salão da Dona Valdete (não esqueço o nome da experiente cabeleireira), pedi que cortasse com a gominha pra facilitar a doação, ela sorridente e desinibida disse que meu cabelo era “ruinzinho” que não prestava nem pra doar, que pra fazer peruca o cabelo tinha que ser bom, que ninguém doente ia querer peruca de cabelo anelado. Não questionei, minha mãe também não. Seguimos adiante.
Usei “Joãozinho” por uns dois anos, nuca batida e bem baixinho. Estilo Sandra Annenberg e Elis Regina. Aos dez anos, decidi deixar crescer pra me sentir mais feminina. Ouvia piadinhas na família (tias e primas) dizendo “vai crescer mas vai crescer para cima”, “cabelo ruim não podia nem ter cortado”, “agora vai ter que usar curto pra sempre”, “passa máquina e acaba essa agonia”… Essas crueldades disfarçadas de brincadeira ferem, no meu coração crescia uma ansiedade e um medo de não ser aceita com meu Black. Ele cresceu, pra cima mas cresceu. Meu irmão me chamava de Jacksons Five, Toni Tornado… Hora eu brigava hora deixava pra lá. Fingia não ligar e bagunçava o cabelo ainda mais, penteava ele seco na ingenuidade de quem não sabia cuidar.
Quando o papai chegava me sentia linda quando ele dizia que eu estava parecendo a Gal Gosta ou a Maria Betânia. Mamãe e minha irmã já viciadas em alisamentos, diziam que eu estava horrível e que ele só falava isso pra me agradar. Aos doze anos de idade, ele já havia crescido o suficiente pra um rabicó. Comecei a fazer bobs ou rolinhos. Em cada região tem um nome, ficava a própria Dona Florinda, do seriado mexicano Chaves. Lavava às quartas e sábados, às vezes ouvia que era exagero, que enrolar uma vez por semana seria o suficiente mas seguia nessa rotina de lavar no início da tarde, ao chegar da escola, me escondia no sol nos fundos da casa e morria de vergonha de ser vista com as pequenas manilhas. Era como se fosse um “segredinho” de beleza. Depois se seco rodava touca de um lado para o outro com uma meia calça velha. Isso me envergonhava profundamente, me sentia horrível com aquilo. Me lembro de uma vez que um amigo da família estava em casa e me viu daquele jeito. Fiquei profundamente sem graça.
Nessa mesma época, eu que amava piscina, mar e cachoeira comecei a evitar. Com a desculpa do tempo, frio ou vento me esquivava desses programas para não revelar meu crespo. Como os rolinhos não estavam resolvendo o problema do volume, resolvi experimentar um alisamento aconselhada por uma profissional doce, chamada Inês. Pensamos em “pasta” ou Hené, comum na época, mas minha mãe foi contra, achou que seria definitivo e perigoso. Optamos por um tal produto que prometia amaciar a raiz. Na primeira aplicação fiquei assustada com o mal cheiro do produto a base de amônia. Parecia esgoto, algo terrível mas o benefício de amansar o bicho compensava a catinga. Na primeira chuva voltando da escola, senti o cheiro e cheguei a pensar que tivesse pisado em algo indesejado. Quando cheguei em casa fui informada pela minha irmã que estava dentro da normalidade, que o produto ao molhar fedia mesmo, que da próxima aplicação poderia caprichar no neutralizante. A vergonha só aumentava, agora do cabelo ruim e do mal cheiro do creme alisante que entendia ter que usar. Não era pra mim uma opção, nem cogitava o cabelo natural. O pichaim crescia e quebrava, não desenvolvia, sempre tinha que fazer um corte, tirar as pontas quebradas, inventar uma franja pra disfarçar os toquinhos na frente. O processo que se repetia toda semana de enrolar facilitou quando ganhei um secador de pé. Me questionava toda vez que via uma amiga de cabelão, ficava inconsolada com a representação disso na sociedade, a feminilidade e beleza estava ligada ao cumprimento do cabelo. Eu discordava mas faltava força pra mudar. Me arrisquei até no megahair. O creme alisante depois de alguns anos parecia ter deixado de fazer efeito, passei de amônia para guanidina sem mudança aparente. Só aliviou o desconforto porque esse segundo produto não cheirava tão mal. Daí, abandonei os rolos e adotei a escova e a chapinha portáteis. Aos 22 anos, ainda super insatisfeita com o cabelo fui apresentada à progressiva pelas cabeleireiras que também se tornaram amigas Manu e Pretinha.
Ao todo, em 10 anos fiz todas as progressivas existentes, com formol, sem formol, de ácido, de álcool, marroquina, inglesa, espanhola, detox, botox, chocolate e até de açaí. Depois de severas crises alérgicas e princípio de queda decidi pensar em tentar conhecer meu cabelo.
Meus maiores incentivos foram meu marido, e minha filha. Ele por me ensinar com seu amor que sou linda natural, do jeitinho que Deus me fez. E ela por inconscientemente começar a repetir minha traumática história de viver de mal com o próprio cabelo. Me assustei ao ver que ela só se sentia bem de escova e prancha, já estava recusando convites de sol, mar, academia e piscina. Quando ela completou 10 anos decidi bravamente mudar. Em princípio, isso gerou angústia, dúvida, medo e de novo muitas críticas… Mas preferi ser forte e superar. Aos 33 anos de idade, já me sentia segura e madura o bastante. Aos poucos fui abandonando os produtos transformadores, a escova, a chapa e em dois anos, entre grupos de cacheadas crespas, finalizações, texturizações, umectações, modeladores, hidratações, reconstruções e muito amor aos cachos, encerrei minha transição.
O grande corte (BC) foi libertador, o choro foi de alívio e genuína liberdade. A cabeleireira chamada Mara me acolheu no Blackqueen e se emocionou comigo numa demonstração de genuína empatia. Já após a transição estive com a querida Vanessa, no Instituto Mania de Cachos e percebi como é importante estar cercada de pessoas que passaram pelas mesmas experiências e podem te aconselhar com muito mais propriedade.
Quero que guarde no seu coração que mulheres curadas na alma são instrumento de cura para todos ao seu redor. Vemos por aí muitas lisas artificialmente alcançadas que mutilaram seus cachos com a prancha, chapinha, alisante e progressiva porque nunca se amaram, porque nunca permitiram conhecer suas madeixas, muitas estão infelizes com o espelho. Comigo foi assim.
Outra ajuda fundamental nesse processo é usar em seu favor as redes sociais. Seguir blogueiras com as quais você se identifica, meninas que tenham conteúdo e que ofereçam mais que dicas de beleza mas um serviço de utilidade pública. Minha gratidão aqui para a doce e linda Ana Lidia Lopes que me encorajou tanto com a sua transparência e a exuberante e também linda Rayza Nicácio que me motivou com toda a sua ousadia.
Definitivamente, posso dizer que a transformação começa de dentro pra fora. Auto estima, aceitação, identidade, perdão e amor próprio são palavras de ordem. Só quem é cacheada crespa empoderada sabe do que eu estou falando. Pra quem está começando, força, vai passar! Pra todas as outras que me ajudaram, muito obrigada! Aguarde, tem novidade por aí…. O drama virou história. Em breve, uma aventura infantojuvenil conta sobre A Princesa Cacheada em homenagem à Maria, minha cacheada preferida.
Beijo querido,
Rafaela Soares Marchezini